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Artigo: A possibilidade jurídica das citações eletrônicas por Whatsapp


Por Lavínia Cavalcante


Em decorrência da Covid-19, vivemos tempos de incertezas, com necessidades sociais novas, com fatos nunca vividos pela humanidade. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a existência de uma pandemia e recomendou o isolamento social para evitar doença, morte e caos social e na saúde pública dos países [1].


O Direito está sendo desafiado e talvez modifique muitas premissas diante da mudança de circunstâncias mundial e local. No curto período de uma semana, a ampulheta sociojurídica do Brasil parece ter virado.


A Covid-19 é um marco histórico que fará com que estudemos o Direito antes do coronavírus (a.c.) e depois do coronavírus (d.c.). Passaremos o próximo século a estudar este momento.


Este artigo possui como objetivo estabelecer novas bases para a citação e fundamentar a possibilidade de ser realizada de maneira eletrônica e pessoal, obedecendo o princípio da legalidade e evitando a decretação da nulidade da citação.


Da internet e do Whatsapp O surgimento da internet desencadeou uma revolução global nos meios de comunicação e na informação. Tendo surgido inicialmente com fins militares, passou a funcionar com fins científicos e, inevitavelmente, atingiu a seara comercial [2], transformando-se numa espécie de gigantesca base de dados descentralizada e autônoma.


O Whatsapp, por sua vez, é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e documentos em PDF, além de fazer ligações grátis por meio de uma conexão com a internet [3].


Atualmente, o Whatsapp é a forma mais comum no Brasil de trocar mensagens, documentos e obter informações, sendo instalado nos celulares da maioria dos brasileiros.


Da citação A citação representa o ato que dá ciência ao réu, executado ou interessado e o faz integrar a relação processual, completando-a [4] e tornando-a trilateral. Representa pressuposto processual vez que nenhum processo pode ser instaurado sem a ciência à parte contrária e a possibilidade de ela se defender.


Ao conceituar citação, o artigo 238 do CPC se vale de conceito genérico, como um ato para convocar o réu, executado ou interessado para integrar a relação, não estabelecendo limitações, nesse dispositivo, para tal.

O artigo 246 do CPC estabelece como regra a citação pelo correio, deixando o Poder Judiciário limitado a um ato processual historicamente compreendido como sendo realizado "pessoalmente" através do correio ou oficial de Justiça, ao problema para enviar cartas pelos Correios e igualmente limitado a regimes de plantão extraordinário que contam com poucos oficiais de Justiça disponíveis, o que dificulta o acesso à justiça, a celeridade processual e ainda colocaria em risco seus servidores se fosse diferente.


Da nova concepção de citação pessoal A regra da citação pessoal é estabelecida no artigo 242 do CPC, tendo sido historicamente compreendida como "pessoal" aquela realizada na presença física ou geográfica da parte.


A ideia de pessoal ainda possui interpretação atrelada a meio físico (como cartas/correio) ou contato físico (através de oficial de Justiça), o que é retrógrado e, atualmente, perigoso ou inviável por determinação de inúmeros decretos estaduais. Essa acepção remete à classificação realizada pelo Código Civil de contratos entre presentes e contratos entre ausentes, que foi resolvida desde 2002. Vejamos:


Artigo 428. Deixa de ser obrigatória a proposta: I — se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante.


A respeito da classificação, escrevemos em 2011: "A dicotomia clássica de contratos entre presentes e entre ausentes, inclusive, já se encontra ultrapassada e sequer deveria ter sido adotada pelo novo Código Civil" [5], em virtude do avanço da tecnologia e de novos meios de comunicação.


Se a classificação de contratos entre presentes, utilizada pelo Código Civil, passou a se distanciar da necessidade de contato físico ou aproximação geográfica, resta muito mais fácil perceber atualmente que a concepção de citação "pessoal" também não possui a obrigatoriedade de "tocar" na parte processada, inobstante um dos maiores benefícios dos celulares serem o fato de as pessoas andarem sempre com seus celulares [6], tocando-os.


Afinal, nada mais pessoal do que Whatsapp, pois representa um canal de comunicação que ninguém utiliza a não ser o próprio usuário ou pessoa de sua extrema confiança.


Aparelhos celulares em que estão localizados aplicativos como o Whatsapp são normalmente protegidos por senhas individuais, biometria digital, facial e até biometria ocular, tornando o acesso externo cada vez mais difícil ou até impossível.


Na maior parte da população sequer os cônjuges e familiares possuem acesso ao Whatsapp do usuário ou suas redes sociais, diferentemente, inclusive, das cartas de citação que são remetidas pelos Correios, cujos cônjuges e familiares podem abrir facilmente.


Além do mais, o Whatsapp é um aplicativo encontrado nos aparelhos celulares, que são locais físicos, que tocam constantemente o usuário. Por vezes, o contato com os aparelhos celulares é maior do que a estadia do indivíduo em sua residência.


O artigo 243, do CPC determina que "a citação poderá ser feita em qualquer lugar em que se encontre o réu, o executado ou o interessado" e a interpretação sistemática do dispositivo, em tempos de isolamento social, permite compreender o aparelho celular e a internet como lugares em que o executado pode ser encontrado pessoalmente, tornando pessoal e válida a citação eletrônica realizada por Whatsapp, sem necessidade de modificação legislativa.


Por fim, a Lei nº 11.419/2006 estabelece no artigo 9º que "no processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta Lei", desde que viabilizem a íntegra do processo e, em assim sendo, "serão consideradas vista pessoal do interessado" (parágrafo primeiro do artigo 9º), reforçando nosso entendimento de que as citações por Whatsapp são citações eletrônicas pessoais.


Da citação eletrônica Combinado com o artigo 193 do CPC, o artigo 246, V, autoriza genericamente a citação eletrônica como válida, a depender de lei. Por sua vez, o artigo 1º da Lei nº 11.419/2006, que regulamenta a matéria, estabelece:


Artigo 1º — O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei.

A Resolução do STF nº 661, de 6 de fevereiro de 2020, regulamenta o envio de comunicações processuais registradas e assim dispõe:


Artigo 2º — Para os efeitos desta Resolução, considera-se: I — mensagem eletrônica registrada: aquela que, transmitida em meio digital, produz prova verificável e inquestionável do envio e entrega da mensagem ao destinatário, assim como de seu conteúdo original, incluindo os arquivos anexos; (...) III - instituição cadastrada: órgão, entidade ou instituição de direito público ou privado, que tenha cadastrado seu endereço eletrônico institucional no STF;


A exegese do dispositivo conduz à autorização de comunicações processuais por meio eletrônico sem prévio cadastro quando disciplina as mensagens eletrônicas registradas como aquelas transmitidas em meio digital que produzem uma prova verificável e inquestionável do envio e entrega da mensagem ao destinatário, assim como de seu conteúdo original, inclusive de arquivos anexos, como o é o Whatsapp.


Permite o STF as comunicações de atos processuais por meio eletrônico, contudo, nos artigos 3º e 4º estabelece a necessidade de um cadastro prévio.


Exigir um cadastro prévio do Whatsapp seria o equivalente moderno a exigir um cadastro prévio do endereço físico do réu ou do devedor.


No entanto, ainda assim é possível interpretar analogicamente o cadastro como podendo ser realizado pelo autor da ação, ao protocolar a ação no sistema do Poder Judiciário, pois o mesmo ocorre para citação pelo correio.


O mundo mudou nos últimos dez dias por causa da Covid-19 o que não havia modificado nos últimos dez anos. A lei que regulamenta a matéria possui a idade de 14 anos e, obviamente, precisa ser atualizada.


No entanto, independentemente disso, a hermenêutica jurídica deve acompanhar o contexto e os conflitos sociais para não acarretar um inacesso à Justiça.


Em virtude da decretação da suspensão dos prazos processuais, na Resolução 313/2020 do CNJ não há menção à questão da possibilidade de citação eletrônica.


No entanto, conforme estabelecido no artigo 1º, § único, da Resolução 313/2020 do CNJ, o STF foi excluído do regime de plantão extraordinário do Poder Judiciário Nacional, tendo, assim, que realizar citações neste contexto de pandemia.


No §4 da Resolução nº 670/2020 do STF estabelece-se como se darão as comunicações processuais sem cadastro, mas elas parecem estar sempre voltadas à utilização do e-mail.


De todo modo, antes da pandemia, o STF havia optado por manter os prazos processuais e admitiu o envio de mensagens eletrônicas sem cadastro prévio para os órgãos que possuem e-mail informado nos autos ou tiverem e-mail no banco de dados do tribunal, o que abriu uma possibilidade para que os órgãos que não possuem e-mail cadastrado sejam citados caso o e-mail seja informado nos autos.


Por analogia, sendo a citação eletrônica por e-mail informada nos autos compreendida pelo STF como pessoal se informada nos autos, o mesmo pode ser compreendido com relação ao Whatsapp, até porque o número de telefone pode ser informado na petição inicial e tal dado ser considerado como um cadastro nos autos.


Da segurança jurídica da citação eletrônica A segurança no recebimento da mensagem ou do documento de mandado de citação por Whatsapp parece ser um dos motivos pelos quais a citação eletrônica ainda não havia sido regulamentada.


Quase um ano antes da chegada da Covid-19, Alexandre Assaf Filho escreveu um artigo em que abordava a questão da intimação eletrônica por Whatsapp sob o ponto de vista da necessidade de modernização e inovação procedimental, considerando o perfil conservador do Poder Judiciário, com dificuldade de absorção de novas tecnologias [7].


No entanto, diante da Covid-19, a citação eletrônica por Whatsapp deixa de ser suscitada por uma questão de modernização e passa a ser necessária por uma questão de segurança e integridade física do ser humano, ambos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da CF/88.


A segurança jurídica das citações eletrônicas por Whatsapp tem que ser garantida, assim como têm que ser garantidas a segurança e integridade física dos indivíduos.


Há várias opções tecnológicas (ou não) para garantia da segurança das citações eletrônicas por Whatsapp, que não passam, necessariamente por um cadastro prévio e burocrático, já que dificilmente as pessoas irão acessar o site dos tribunais para realizar cadastros em tempo tão atribulados.


Sem querer esgotar o assunto, pois as opções devem ser discutidas pelo corpo técnico do Poder Judiciário, pode-se considerar visualizada a citação quando a mensagem for assinalada como azul ou, ainda, respondida.


Diante do cenário da Covid-19, no dia 31 de março de 2020, diante da Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, do CNJ para não decretação da prisão civil do devedor de pensão alimentícia, a 22ª Vara Cível de Família da Capital autorizou a citação por Whatsapp num processo de execução de pensão alimentícia, com fundamento no melhor interesse da criança:


"Considerando a necessidade premente de garantir aos menores o pagamento da pensão alimentícia em débito, defiro a realização da citação do executado por meio do seu Whatsapp (...), considerando o executado intimado da presente se aparecerem os dois traços azuis ou se o mesmo se manifestar durante a conversa."


No caso em comento houve a citação, pois tanto os dois traços azuis apareceram quanto o executado se manifestou durante a conversa. Percebe-se, então que a questão da segurança da citação pode ser facilmente ultrapassada em boa parte dos casos, sejam por estes ou outros critérios avançados.


É a aplicação da teoria da ciência inequívoca, aceita pelo STJ.

Caso a citação eletrônica seja enviada e não assinalada como visualizada ou respondida, é possível que o oficial de Justiça telefone para a pessoa e informe acerca da existência e envio da citação, registrando o ato nos autos após obter a confirmação de alguns dados, como o nome completo e tal documento deter a presunção de fé pública de que fora realizado.


Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 11.419/2006 estabelece:


Artigo 11 — Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais. § 1º — Os extratos digitais e os documentos digitalizados e juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas autoridades policiais, pelas repartições públicas em geral e por advogados públicos e privados têm a mesma força probante dos originais, ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização. § 2º — A argüição de falsidade do documento original será processada eletronicamente na forma da lei processual em vigor (GN).


Na hipótese de não resposta ou aparecimento de confirmação de leitura, a garantia da origem dos documentos produzidos eletronicamente poderia ser dada pelos oficiais de Justiça, por exemplo, sendo considerado um documento original e um ato válido, como defende Alexandre Assaf Filho [8].


Há, ainda, a possibilidade de o réu não responder no Whatsapp e, contudo, manifestar-se processualmente, hipótese em que se aplicaria o artigo 239, §1º, do CPC.


E não havendo resposta da parte, nem sendo o contato obtido pelo oficial de Justiça, ou não havendo manifestação processual, pode-se utilizar como consequência a inexistência do ato, como prevê, por exemplo, a Portaria nº 78/2018 da Justiça Federal de Pernambuco (inobstante ter como premissa a necessidade de cadastro prévio):


Artigo 5º — O destinatário deverá responder à mensagem (tomar ciência) no prazo de 01 (um) dia útil, devendo o servidor responsável pela intimação certificar nos autos, iniciando a contagem dos prazos na forma da legislação de regência. § 1º — Caso o intimando não responda no prazo assinalado, a intimação será realizada na forma convencional.


Das considerações finais A Covid-19 representa um marco na mudança social, cultural e jurídica. Os padrões e as interpretações consolidadas antes do seu surgimento dificilmente permanecerão.


No tocante à citação, as mudanças legislativas não foram relevantes, razão pela qual se faz necessário interpretar o artigo 242 do CPC num mundo novo, em que os celulares representam um dos itens mais pessoais do ser humano, com biometrias digitais, faciais ou oculares que o protegem, resultando numa legitimidade da citação pessoal por Whatsapp maior do que pelo correio.


A realidade social de obrigatoriedade de isolamento, a perspectiva de que essa situação mudará a cultura de maneira definitiva e os princípios constitucionais e processuais fundamentam o avanço das comunicações dos atos processuais e a possibilidade de citação pessoal por Whatsapp.


Nesse sentido parece se inclinar a Resolução nº 661/2020 do STF, ao admitir mensagens eletrônicas registradas como aquelas transmitidas em meio digital que produzem uma prova verificável e inquestionável do envio e entrega da mensagem ao destinatário, assim como de seu conteúdo original, inclusive de arquivos anexos.


[1] Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/16/oms-coronavirus.htm. Acesso: 28 março de 2020. Desde 6 de fevereiro de 2020, o Brasil havia publicado a Lei nº 13.979 para regulamentar as medidas de saúde pública para enfrentamento do coronavírus. [2] No mesmo sentido, Menezes Leitão, in Comunicações não solicitadas (spam), in Lei do Comércio Eletrónico Anotada. Coimbra, 2005, p. 213. [3] Wikipedia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/WhatsApp. Acesso 30 mar 2020. [4] Nesse sentido, Fernanda Tartuce e Luiz Dellore. Manual de prática civil.12. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, p. 109. [5] CAVALCANTI CUNHA, Lavínia Cavalcanti Lima. Formação dos contratos eletrônicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2916, 26 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19410. Acesso em: 29 mar. 2020. [6] CONSULTOR JURÍDICO. 11 tribunais de Justiça já usam o WhatsApp para envio de intimações. 31 de janeiro de 2018, 12h38. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/11-tribunais-justica-usam-whatsapp-envio-intimacoes. Acesso: 28 mar 2020. [7] O WhatsApp e a Fé pública do oficial de justiça: a inovação de natureza procedimental, in Mega Jurídico. 17 maio 2019. Disponível em https://www.megajuridico.com/o-whatsapp-e-a-fe-publica-do-oficial-de-justica-a-inovacao-de-natureza-procedimental/. Acesso: 29 mar 2020. [8] O WhatsApp e a Fé pública do oficial de justiça: a inovação de natureza procedimental, in Mega Jurídico. 17 maio 2019. Disponível em https://www.megajuridico.com/o-whatsapp-e-a-fe-publica-do-oficial-de-justica-a-inovacao-de-natureza-procedimental/. Acesso: 29 mar 2020.


Lavínia Cavalcanti é advogada, mediadora e professora adjunta de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mestra em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e conselheira consultiva da Escola Superior da Advocacia da OAB/AL.


Fonte: Conjur

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